12 junho, 2008

Ele, tão inspirador, falou o que engasgou dentro de mim

"Eu me experimento inacabado. Da obra, o rascunho. Do gesto, o que não termina.
Sou como o rio em processo de vir a ser. A confluência de outras águas e o encontro com filhos de outras nascentes o tornam outro. O rio é a mistura de pequenos encontros. Eu sou feito de águas, muitas águas. Também recebo afluentes e com eles me transformo,
O que sai de mim cada vez que amo? O que em mim acontece quando me deparo com a dor que não é minha, mas que pela força do olhar que me fita vem morar em mim? Eu me transformo em outros? Eu vivo para saber. O que do outro recebo leva tempo para ser decifrado. O que sei é que a vida me afeta com seu poder de vivência. Empurra-me para reações inusitadas, tão cheias de sentidos ocultos. Cultivo em mim o acúmulo de muitos mundos.
Por vezes o cansaço me faz querer parar. Sensação de que já vivi mais do que meu coração suporta. Os encontros são muitos; as pessoas também. As chegadas e partidas se misturam e confundem o coração. É nesta hora em que me pego alimentando sonhos de cotidianos estreitos, previsíveis.
Mas quando me enxergo na perspectiva de selar o passaporte e cancelar as saídas, eis que me aproximo de uma tristeza infértil.
Melhor mesmo é continuar na esperança de confluências futuras. Viver para sorver os novos rios que virão.
Eu sou inacabado. Preciso continuar.
Se a mim for concedido o direito de pausas repositoras, então já anuncio que eu continuo na vida. A trama de minha criatividade depende deste contraste, deste inacabado que há em mim. Um dia sou multidão; no outro sou solidão. Não quero ser multidão todo dia. Num dia experimento o frescor da amizade; no outro a febre que me faz querer ser só. Eu sou assim. Sem culpas."

Pe. Fábio de Melo

Pedacinho do que ficou

O dia hoje foi vermelho e cor-de-rosa, enquanto das minhas janelinhas parecia borrado em preto e branco. Percebi estar cantarolando minha canção triste que só soa bem na minha vida quando estou feliz. Pareço mais silente do que sempre fui, mas ouço grito pelos cantos mais profundos de lugares em mim. Gritos de lá onde nunca cheguei, nem jamais ousei ficar à espreita. Tive um encontro com um estranho jeito de fazer as coisas, e entendi que tudo pode fazer mais ou menos sentido, começar ou terminar numa simples palavra que escolho. E parece que nunca vou conseguir saber o que dizer...

02 junho, 2008

Dona "dos Anjos"

Quando eu era pequena, era ela quem brincava com as bonecas de pano de bocas pretas ensopadas de café. No cantinho do seu quarto, eu ficava de cócoras do ladinho da rede enquanto ela dizia coisas sem sentido, mas que sentido sempre faziam a alguém ainda mais inocente do que ela. Balançava, falava baixinho de lembranças do seu passado (que pareciam tão presentes), penteava seu cabelo fino e grisalho, vestida em seu vestido floral e calçada em suas alpargatas número trinta e cinco, o número das minhas.

A transformação dela em criança deu-se na mesma proporção aritmética em que me tornei uma mulher. A cada nova visita percebia que perdia um pouco mais do seu bom humor, de sua vontade de conversar, de rir e contar histórias de seu tempo, que pareciam meio dissonantes na imaginação confusa de quem perdeu a capacidade de entender o mundo quando tinha aproximadamente a idade que tenho hoje.

Enquanto ela vencia o tempo sem medos, cinco gerações iniciavam suas histórias. Ainda ali, em cada visita no fim da tarde, falava em viagens a cavalo, em missas, em "compadres" desconhecidos, em suas aventuras pelo quintal, em banhos que teimava em não gostar, em tudo quanto viveu como se nada tivesse mudado. Era vaidosa, e adorava um elogio à sua beleza. Nos abençoava, se chamada de madrinha, porque não concebia ser tão mãe, avó, bisavó ou trisavó. Cada dia a mais no meio de um número tão grande de descendentes parecia um estender de um caminho pleno em seu instante, sempre alegre, sempre puro, sempre fácil.

Seu nome definiu bem o que ela seria, e para onde iria depois de nos ensinar tanto com sua fragilidade. Dona Raimunda "dos Anjos", porque pertencia ao céu e a terra. Pertencia a mim, minha bisavó, como pertencia às centenas de pessoas a quem proporcionou a vida durante suas 90 velinhas acesas. A última se apagou ontem, com o sopro tranquilo de quem já, há muito, pedia para descansar...

Agora descanse, "Bisa", e de lá, agora que você entende tudo, cuide um pouquinho mais de tanta gente que carrega em sua história um pouquinho de você.