02 junho, 2008

Dona "dos Anjos"

Quando eu era pequena, era ela quem brincava com as bonecas de pano de bocas pretas ensopadas de café. No cantinho do seu quarto, eu ficava de cócoras do ladinho da rede enquanto ela dizia coisas sem sentido, mas que sentido sempre faziam a alguém ainda mais inocente do que ela. Balançava, falava baixinho de lembranças do seu passado (que pareciam tão presentes), penteava seu cabelo fino e grisalho, vestida em seu vestido floral e calçada em suas alpargatas número trinta e cinco, o número das minhas.

A transformação dela em criança deu-se na mesma proporção aritmética em que me tornei uma mulher. A cada nova visita percebia que perdia um pouco mais do seu bom humor, de sua vontade de conversar, de rir e contar histórias de seu tempo, que pareciam meio dissonantes na imaginação confusa de quem perdeu a capacidade de entender o mundo quando tinha aproximadamente a idade que tenho hoje.

Enquanto ela vencia o tempo sem medos, cinco gerações iniciavam suas histórias. Ainda ali, em cada visita no fim da tarde, falava em viagens a cavalo, em missas, em "compadres" desconhecidos, em suas aventuras pelo quintal, em banhos que teimava em não gostar, em tudo quanto viveu como se nada tivesse mudado. Era vaidosa, e adorava um elogio à sua beleza. Nos abençoava, se chamada de madrinha, porque não concebia ser tão mãe, avó, bisavó ou trisavó. Cada dia a mais no meio de um número tão grande de descendentes parecia um estender de um caminho pleno em seu instante, sempre alegre, sempre puro, sempre fácil.

Seu nome definiu bem o que ela seria, e para onde iria depois de nos ensinar tanto com sua fragilidade. Dona Raimunda "dos Anjos", porque pertencia ao céu e a terra. Pertencia a mim, minha bisavó, como pertencia às centenas de pessoas a quem proporcionou a vida durante suas 90 velinhas acesas. A última se apagou ontem, com o sopro tranquilo de quem já, há muito, pedia para descansar...

Agora descanse, "Bisa", e de lá, agora que você entende tudo, cuide um pouquinho mais de tanta gente que carrega em sua história um pouquinho de você.